Vergonha.
Emails circularam dando a notícia do toque de recolher a partir das 18h. O Governador aparece, em seguida, na tevê, desmentindo o boato. Imediatamente após isso, as portas começam a baixar, uma a uma, depois muitas de uma vez, até que todo o comércio da maior cidade do país estivesse completamente fechado, como "os bandidos mandaram", antes das 18h.
A cidade inteira - e a maior parte do Estado - acreditou no bandido, na suposta mensagem apavorante do bandido, porque ela é mais real e honesta que a palavra frouxa das autoridades.
O Estado inteiro viu o secretário da Segurança dizendo, pela manhã, que "enquanto não pararem os ataques, os traficantes vão amargar prejuízos, porque a polícia continuará nas ruas". Como assim? Era o secretário da Segurança assumindo indiretamente a permissividade com que as autoridades deixaram os traficantes se estabelecer comercialmente por aqui? Era o secretário da Segurança deixando transparecer um acordo de cavalheiros aparentemente quebrado pelos... bandidos?
Os bandidos mandaram fechar. E a população, civilizadamente, obedeceu.
A partir do meio-dia, no Centro da capital, começaram a fechar o comércio. O resto da cidade começou a dispensar os funcionários a partir das 16h. Todos os shopping centers fecharam às pressas, às 17h.
O Metrô, superlotado. As ruas, sem o rodízio municipal de veículos, quase sem ônibus, e com muitas ruas fechadas total ou parcialmente - por motivo de (in)segurança nas regiões próximas aos quartéis e delegacias e nas pontes e alças de acesso das avenidas Marginais - transformaram-se num mar de veículos, que só não pode ser classificado como caos porque o medo paralisa até os mais atrevidos motoristas. Muita gente caminhando em grupos pelas ruas.
Agora - passa das 21 h - tirando os congestionamentos em algumas vias, quase não há movimento.
É o que nós - paulistanos, paulistas - cultivamos, silenciosamente.
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Não acredito em "ondas" de violência; esta é um processo, um câncer. E, como no tratamento de um câncer, é necessário ir além da quimioterapia.
Os últimos acontecimentos apontam para muito mais do que apenas falta de aparelhamento, de treinamento, de capacidade administrativa do sistema carcerário. Isso tudo também, claro, mas há mais...
Legislação permissiva, impunidade generalizada, judiciário ineficiente, justiça desigual e covarde, advogados açougueiros, nenhuma hombridade, nenhum caráter, nada que supere o poder do dinheiro...
E uma sociedade de pequenas vantagens, pequenos poderes, pequenas corrupções cotidianas, praticadas, aceitas, defendidas pelo cidadão comum, pelo formador de opinião, pelo homem que deveria defender e observar as leis, por todos.
Este é o câncer.
Não há "ondas de violência", há fases de crescimento do tumor maligno que o silêncio alimenta e só faz crescer ante os olhos dos que discutem mas não agem.
Mais assustadora do que a ação dos criminosos é a certeza de que passada "a onda", a estupefação coletiva diante da tsunami, tudo será aceito como um movimento natural e nada mais será feito... por medo de cortar a carne, o tecido do qual, afinal, se faz parte.
O terror é saber que o vizinho do lado, o companheiro de trabalho, a pessoa que atravessa a rua ali, agora, não me acompanhariam em nenhum movimento real contra isso tudo. O apavorante é saber que, além de ter de ter medo, tenho de seguir assim sozinho, porque é assim que todo mundo segue.
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De cabeça baixa, envergonhado, em casa, porque os bandidos mandaram.
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Essa nossa - minha - incompetência, incapacidade de ação me envergonha, entristece, anula.
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Por volta das 18 h, muita gente caminhava em grupos pelas ruas. As únicas viaturas policiais que se encontravam no caminho estavam estacionadas, em esquinas, aos pares, e vazias. Os policiais, a alguns metros delas, em algum boteco.De todos os estabelecimentos comerciais da cidade, somente os botequins permaneceram abertos. Aparentemente, os bêbados sentiam-se seguros, protegidos.
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Quando o Governador apareceu na tevê desmentindo o boato do toque de recolher, nenhum jornalista teve coragem de perguntar:
"O senhor recomendaria a seus filhos que fossem à escola hoje à noite, a sua esposa que saísse, fosse às compras, normalmente, esta noite? O senhor iria jantar com sua família tranqüilamente em algum restaurante da cidade hoje? O senhor realmente confia assim no que está falando, Governador?"
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A insensibilidade das pessoas é o mais impressionante.
Pessoas que foram ao Skol Beats, virar a madrugada do sábado para o domingo, exatamente quando o pior acontecia, comentavam, hoje, pela manhã: "nossa... a tevê e a imprensa estão exagerando; está tudo tão tranqüilo, a zona Norte está tão sossegada, no Skol Beats não houve nenhum incidente...
Vi tudo ao contrário, polícia nas ruas, policiais visivelmente alterados, sentindo medo, e considero absurdo ver pessoas que poderiam se mobilizar diante de uma situação dessas ficar de braços cruzados porque, simplesmente, "não viram nada acontecendo".
Essas mesmas pessoas criticam o Lula por dizer algo parecido, declarar que não viu, não vê o que de pior se passa em seu governo; criticam, mas fazem o mesmo, e andam pela cidade como se não houvesse nada errado, tudo fosse fantasia da imprensa, desequilíbrio no noticiário da tevê.
Formadoras de opinião, não se manifestam e criticam "o exagero".
Ouvindo seus comentários, eu entendo o Lula, entendo os cariocas - que tiveram a mesma atitude há uns anos -, entendo os que só se mexem depois que a bala os atinge, no peito, ou a um de seus entes queridos.
Considero absurda a regra do "alienar-se e continuar vivendo".
Tudo bem. Sejamos normais. Esperemos passar a "onda", esperemos... mas não pulemos sete; seria arriscado.
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